sexta-feira, 3 de junho de 2011

3° Fichamento

A introdução na medicina de técnicas oriundas da genética ocasionou uma ruptura antropológica?

Anne Fagot-Largeault


“No presente artigo é exposto e discutido um conjunto de posições teóricas acerca da aplicação da genética na medicina com vistas a examinar uma possível ruptura antropológica.”

“Após um balanço crítico acerca do impacto real da genética na medicina, são analisados casos concretos de aplicações médicas da genômica nos quais são comparadas as posições contrárias e favoráveis à tese do caráter desumanizante da geneticização.”

“A descoberta por Watson e Crick da estrutura em dupla hélice da molécula de DNA (Nature, 1953, 171, p. 737-8), cujo qüinquagésimo aniversário foi celebrado com pompa (Nature, 2003, 421, p. 395-453), revolucionou a medicina? Aos olhos dos médicos clínicos, o impacto da genética molecular sobre a prática médica é escasso; aliás, eles colocam a questão para o futuro:”

“Curiosamente, o aparecimento no campo médico da produção de imagens digitalizadas, nos anos de 1970, depois da robótica, fez surgir uma outra censura (simétrica e oposta à primeira): enquanto o conhecimento concreto do corpo é eminentemente o do médico que apalpa, percute e escuta e, ainda mais eminentemente, o do cirurgião que abre esse corpo, percebe os movimentos das vísceras e tem a vida desse corpo ao alcance de seus dedos, é manifesto que os estudantes de medicina hoje em dia estudam o corpo por meio de imagens de computador; que em oftalmologia, em neurocirurgia e em urologia acontece do praticante operar sobre imagens; na verdade, ele deixa um robô trabalhar a partir de dados digitalizados.”

“O reducionismo que acompanha a genética molecular identificará as peças do quebra-cabeça, mas reuni-las para compreender como ocorre a disfunção de sistemas complexos exigirá uma abordagem mais integrada diferentemente daquela que dispomos atualmente (Bell, 2003, p. 416).”

“Além do aconselhamento genético, há um domínio onde as tecnologias oriundas da genética molecular conduziram a uma revolução discreta mas real: a infectologia. A possibilidade de fazer em laboratório o diagnóstico através da RT-PCR2 de um parasita, de uma bactéria ou de um vírus permite um ganho de tempo que pode ser crucial para os doentes”

“Aqui estamos ainda às margens da psiquiatria: o retardo mental não é uma doença mental. O Relatório sobre a saúde no mundo, publicado pela OMS (cf. Organisation, 2001), mostra que os distúrbios mentais têm um peso muito grande sobre os sistemas de saúde. Para a maioria das grandes patologias psiquiátricas (esquizofrenias, ciclotimias, distúrbios obsessivos-compulsivos, dependências), supõe-se que existam fatores de suscetibilidade genética; mas sabe-se que eles interagem com fatores epigenéticos e ambientais. Em resumo, as doenças psiquiátricas são doenças multifatoriais, como também o diabetes, a hipertensão, a obesidade, a surdez senil etc.”

”Segundo os historiadores, a medicina tornou-se oficialmente molecular em 1949, com a publicação na Science do artigo de Linus Pauling e colaboradores, intitulado "Sickle cell anemia, a molecular disease" ("A anemia falciforme, uma doença molecular"). Esse acontecimento foi prontamente apresentado como uma mudança de paradigma e sua história foi romanceada.”

“Reconstruindo cuidadosamente a história da pesquisa sobre essa doença, Feldman e Tauber estabeleceram que a anemia falciforme (mais tarde chamada drepanocitose), caracterizada em 1910 através de critérios clínicos (anemia com úlceras nas pernas) por ocasião da descrição do primeiro caso, já era considerada hereditária (com transmissão mendeliana dominante, acreditava-se; na realidade, recessiva) quando, em 1922, conheciam-se apenas três casos; e que ela foi, desde os anos de 1920, motivo de trocas permanentes entre pesquisa de laboratório e pesquisa clínica. Eles concluíram que não houve domínio da pesquisa molecular (química) sobre a pesquisa clínica, mas, antes, complementaridade e colaboração.”

“No final dos anos de 1990, no Journal of Medicine and Philosophy (norte-americano) e na sua contraparte européia, Medicine, Health Care and Philosophy, ocorreu um grande debate pró ou contra a tese da geneticização.”

“Em um argumento filosófico, alguns exemplos bastarão para tornar plausível um ponto particular. Às vezes os próprios exemplos reais não têm interesse, fundando-se a filosofia sobre experiências hipotéticas de pensamento para compreender os fenômenos. [...] Engana-se sobre a natureza de uma tese filosófica quem quiser testá-la com o auxílio de instrumentos e métodos provenientes das ciências empíricas (Have, 2001, p. 298).”

“A partir de 1982, não houve mais o nascimento de crianças homozigotas. É importante notar que essa estratégia de forma alguma erradicou o gene (disperso na população heterozigota) e que ela permite aos casais heterozigotos terem crianças. Falta assinalar também que o sucesso dessa estratégia repousa sobre a informação dos cidadãos, que deve prosseguir de uma geração à outra.”

“A idéia de que um dia a espécie humana aplicará a si mesma os meios tecnológicos que emprega para modificar as plantas ou os animais não é nova. Jean Rostand escreveu em 1950: "seja pelos genes do núcleo seja pelos genes do citoplasma, parece que o homem acabará por realizar em seu organismo sérias reformas estruturais" (p. 92).”

“As possibilidades de jogar assim com a reprodução humana são incontáveis. Certos autores não hesitam em antecipar um "melhoramento genético" (cf. Gordon, 1999) de nossa espécie mediante a correção, nos primeiros estágios embrionários, dos defeitos genéticos identificáveis.6 Outros temem uma deterioração, sabendo que a ICSI, por exemplo, permite que um pai estéril tenha uma criança masculina... estéril como ele. Muitas preocupações foram levantadas em relação à ICSI (cf. American Society for Repoductive Medicine, 2000; Hansen et al., 2002).”

“Alguns filósofos tentaram formular princípios reguladores desses avanços tecnológicos. Para Jürgen Habermas (cf. 2002), a idéia de que um ser humano possa ser, por menor que seja, uma construção tecnológica (porque, por exemplo, ter-se-ia nele corrigido um defeito genético) é inaceitável.”

“Que nos seja permitido, para concluir, voltar a um ponto de vista dos médicos clínicos, com um tom menos trágico e também menos grandioso, sobre o que evocam as inquietudes antropológicas anteriormente em questão. Com a preocupação de que os riscos das aplicações médicas da genômica aprofundem a distância entre os países do norte e do sul, dois pesquisadores (cf. Alwan & Modell, 2003) publicaram em janeiro de 2003 uma recomendação na Nature Genetics: eles argumentaram que certas técnicas de diagnóstico genético são atualmente simples e baratas o bastante para serem tão acessíveis quanto a medida da temperatura, da pressão arterial ou da glicemia; que os serviços de saúde, onde eles existem, poderiam e deveriam incorporá-las àquilo que a OMS denomina cuidados de base, oferecidos nos postos de saúde.”

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